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NOTAS SOBRE O CONCEITO DE AÇÃO DRAMÁTICA

Roberto Mallet


Muitos de nossos atores não compreendem adequadamente o que seja uma ação dramática. De fato, tenho constatado esse equívoco na maior parte dos espetáculos a que tenho assistido nos últimos anos, e até mesmo em escolas de arte dramática. E se na cena propriamente dita muitas vezes não encontramos sequer um vestígio de ação dramática, os debates realizados nos Festivais e Mostras indicam que o seu próprio conceito é freqüentemente confuso e indeterminado. É claro que se não temos nenhuma idéia do que seja ação, não há a menor possibilidade de encontrarmos sua realidade em cena.

Essa falta de clareza conceitual faz com que a palavra "ação" surja no discurso de muitos com uma certa atmosfera "mística", como se sua presença dependesse de outras realidades também mistificadas como "inspiração", "talento", "eleição", etc. É preciso descartar definitivamente a idéia romântica de que o artista é um favorito das musas, um escolhido dos deuses, tendo por tarefa e "missão" ofertar ao mundo os frutos de seu gênio. A obra de arte é resultado de muito esforço, trabalho e dedicação.

Esforço e trabalho, entretanto, por mais necessários e indispensáveis, não bastam. É preciso técnica, quer dizer, é preciso saber o quê e como fazer. No caso do ator: saber o que é ação e como agir em cena.

Diz Aristóteles que a tragédia (e podemos estender isto a todo gênero teatral) não é principalmente imitação de homens, mas de ações e de vida. "O mito (a trama dos acontecimentos e das diversas ações), continua o filósofo, é o princípio e como que a alma da tragédia." (1)

A ação portanto é a matéria básica do teatro e também do trabalho do ator. E podemos definir ação como todo e qualquer movimento (não necessariamente físico) que é fruto de uma vontade, e que visa um determinado objetivo (visualizado pela inteligência). Nem todo movimento realizado pelo homem é uma ação. Para que o seja, é necessário que esse movimento resulte de um querer alcançar um determinado objetivo conhecido pelo sujeito.

A ação humana tem uma raiz imaterial; origina‑se naquilo que há de mais alto e nobre no homem, no que tradicionalmente denomina‑se de "espírito": vontade e inteligência. A vontade quer alcançar um bem que é conhecido pela inteligência. Notemos que esse bem é percebido pelo sujeito como algo que lhe falta, algo que, se possuído, lhe trará certa felicidade.

Assim, a ação tem um caráter transcendente. Não é realizada por si mesma, mas como um meio que visa alcançar determinado fim. Se não considerarmos essa transcendência, o conceito de ação torna‑se incompreensível.

Como disse Hegel, falando especificamente de dramaturgia, a ação dramática "é a vontade humana que persegue seus objetivos, consciente do resultado final". (2) Romeu, apaixonado por Julieta, quer unir‑se a ela, fazer dela sua esposa; Macbeth quer ser o rei da Escócia; Hamlet quer vingar o assassinato de seu pai, restabelecer a justiça no reino da Dinamarca. Tudo o que essas personagens fazem em sua trajetória dramática relaciona‑se com seus respectivos objetivos (e, secundariamente, com seu caráter). Romeu, por exemplo, invade o jardim do palácio dos Capuleto, declara‑se a Julieta, tem uma entrevista com Frei Lourenço pedindo sua intercessão, pede a Julieta (através de sua ama) que vá "confessar‑se" com Frei Lourenço, etc.; Hamlet finge estar louco, utiliza‑se da trupe de atores para confirmar o assassinato de seu pai, agride Ofélia (para livrar‑se do impedimento que seu próprio amor representa), mata o espião que se esconde atrás da cortina do quarto de sua mãe...

Creio que o exposto acima basta para que se tenha uma idéia clara sobre o conceito de ação em dramaturgia. (3) Não é suficiente, entretanto, para que compreendamos o papel da ação como matéria para o trabalho do ator. É provável que muitos dos espetáculos daquela Mostra nos quais nós, debatedores, apontamos uma ausência de ação, sejam obra de atores e diretores que já têm, com maior ou menor clareza, esse conceito de ação. Acontece que tal compreensão intelectual, por mais indispensável que seja, não é suficiente para abordarmos a construção de uma cena. É preciso que saibamos também como essa mesma dialética entre vontade e finalidade encarna‑se no trabalho do ator.

Ao falarmos da ação do ator em cena, o discurso torna‑se necessariamente mais denso e mesmo mais obscuro, pois trata‑se agora de uma realidade concreta, que não pode ser esgotada pela análise pura e simples, e exige do leitor a experiência dessa mesma realidade, tanto no teatro como na vida. Em virtude do caráter episódico deste texto, posso apenas indicar alguns pontos que deverão ser pesquisados, desenvolvidos e completados pelo leitor.

Em primeiro lugar, tudo o que o ator faz em cena deve ser ação, ou seja, em tudo que ele faz estão envolvidas as faculdades vontade e inteligência. O homem, porém, não possui apenas essas faculdades; ele também tem memória, imaginação, sentidos. Cada uma dessas operações corresponde a uma ordem de ser: o homem é espírito (vontade e inteligência), alma (memória/imaginação) e corpo (sentidos). Essas ordens entretanto não são compartimentos estanques, isolados, mas integram‑se todas em uma totalidade. Quando eu digo, portanto, que tudo o que o ator faz em cena deve ser ação, quero dizer que em tudo o que ele faz deve haver uma integração dessas várias faculdades, com a particularidade de que o foco para onde elas convergem é o corpo do ator.

Isto é naturalmente assim. O que acontece na alma de um homem tem ressonâncias em seu corpo, de maneira que, quando vejo alguém faço intuitivamente uma leitura das tensões e moções que inscrevem‑se em seu corpo e, assim, tenho uma idéia mais ou menos clara do que se passa em sua alma. Todos nós temos essa experiência, especialmente quanto às pessoas que nos são mais próximas.

Agora, no caso do ator, essas tensões e moções físicas devem ser visíveis, e portanto é preciso que sejam como que aumentadas, amplificadas, resultando em um nível de energia e de esforço bem maior do que os utilizados no nosso dia a dia.

Todo pensamento, todo movimento feito em cena que não seja uma ação dramática interfere na escritura cênica e é lido pelo público, mesmo que este não tenha consciência clara dessa leitura. Todo pensamento e todo ato inscrevem‑se no corpo do ator; se, ao lado da seqüência de ações dramáticas desenvolvida pelo ator, houver uma variedade de pensamentos e movimentos que nada têm a ver com a cena, o resultado disto assemelha‑se a um desenho cheio de borrões e de linhas absurdas e inúteis, a ponto de o espectador ficar completamente confuso, sem saber o quê deve ser lido e muitas vezes sem ter nenhuma indicação de para onde deve dirigir sua atenção.

Esta é uma descrição paroxistica, porque de fato o que geralmente acontece é um desenho bastante incompleto, uma linha aqui, uma mancha acolá, sem unidade e integridade. Acontece uma ação agora, outra mais tarde, e entre elas alguns momentos de simples atividade, de movimentos gratuitos, de tentativas de "expressar sentimentos", ou mesmo de pura ausência.

Um outro ponto a assinalar é a crença extremamente difundida entre os nossos atores de que a interpretação teatral é construída sobre os sentimentos, como se fosse possível manipular diretamente as nossas emoções. Isto é um engano e leva a uma interpretação mentirosa e cheia de clichês. Os sentimentos e emoções são sempre resultado da ação do ator sobre seu próprio corpo, da manipulação da energia, da distribuição das tensões musculares, do movimento interno (muscular, nervoso) que resulta do foco da vontade sobre um determinado objetivo ficcional.

Essa idéia de que a matéria do ator são os seus sentimentos deve‑se a uma leitura equivocada da obra de Stanislavski. Os capítulos 2 e 3 de A Preparação do Ator são uma obra‑prima na descrição dos principais erros que os atores cometem em cena e na definição da ação física como matéria fundamental para o ator. Limito‑me aqui a citar a passagem em que o mestre russo fala mais especificamente sobre a questão que vimos tratando (o sentimento).

"Em cena, diz o diretor Tórtsov depois de um mau sucedido teste de seus alunos, não corram por correr, nem sofram por sofrer. Não atuem de um modo geral, pela ação simplesmente, atuem sempre com um objetivo. "E logo depois da explanação, numa cabriola pedagógica, ordena aos atores: "E agora subam ao palco e façam!"

Os alunos vão para o palco e imediatamente incorrem nos dois erros básicos cometidos pelos atores: buscam ou "ser a personagem" ou "sentir as emoções da personagem". Terminado o exercício, Tórtsov chama três atores: "Sentem‑se aqui mesmo nestas cadeiras, onde posso vê‑los melhor, e comecem: você vai sentir ciúmes, você vai sofrer e você entristecer‑se, apenas expondo esses estados de alma, simplesmente por eles mesmos. "E Kóstia, o aluno‑narrador, conta: "Sentamo‑nos e logo percebemos como era absurda a nossa situação. Enquanto eu andava de um lado para o outro, retorcendo‑me como um selvagem, era possível acreditar que havia algum sentido naquilo que eu fazia, mas quando me sentaram numa cadeira, sem nenhum movimento exterior, patenteou‑se o absurdo da minha interpretação."

"Bem, o que é que vocês acham? perguntou o Diretor. ‑ É possível alguém sentar‑se numa cadeira e, sem nenhum motivo, ter ciúmes? Ou ficar todo emocionado? Ou triste? Claro que é impossível. Fixem esta regra de uma vez por todas em suas memórias: em cena não pode haver, em circunstância alguma, qualquer ação cujo objetivo imediato seja o de despertar um sentimento qualquer por ele mesmo. (...) Quando escolherem algum tipo de ação, deixem em paz o sentimento e o conteúdo espiritual. Nunca procurem ficar ciumentos, amar ou sofrer, apenas por ter ciúme, amar ou sofrer." (4)

É bem verdade que algumas expressões usadas por Stanislavski podem dar lugar a equívocos. E isto não só em razão de uma formulação inadequada de seu pensamento, mas também porque o seu "sistema" estava em constante evolução, e afirmações que lemos em A Preparação do Ator surgem reformuladas, ampliadas e algumas até mesmo negadas em obras posteriores.

Em resumo, podemos aplicar uma regra fundamental da escritura dramatúrgica ao trabalho do ator: "a personagem não deve dizer quem e como ela é; isto é revelado através do que ela faz e das situações que ela vive em cena. "Se há uma ação concreta e adequada em cena, o público saberá decodificar e compreender o que se passa nas almas das personagens.

Muitas vezes, ao invés de agir, queremos "significar", fingimos que estamos sentindo ou fazendo alguma coisa, e para tanto usamos movimentos aleatórios, esgares, respirações, quando não chegamos aos clichês e às micagens mais óbvias; em outras palavras, em vez de fazer, mostramos que estamos fazendo. Nos dois capítulos acima citados vocês poderão encontrar vários exemplos desse erro.

Para finalizar, vejamos um exemplo de uma seqüência de ações em "Romeu e Julieta". Tomemos o início da cena II do segundo ato (a famosa cena do Balcão). Na mesma noite em que conheceu Julieta, Romeu dirige‑se ao palácio dos Capuleto e penetra em seu jardim. Quer rever Julieta e, se possível, falar‑lhe. Fiquemos apenas com esse momento, a entrada de Romeu e seu deslocamento até as proximidades do palácio, e imaginemos algumas formas de abordar essa cena.

1. Raciocinemos em termos realistas. Dissemos mais acima que Romeu quer unir‑se a Julieta; poderíamos denominar este objetivo da personagem de "objetivo final". Ela entretanto precisará realizar outros objetivos mais específicos, que representam meios que conduzem ao objetivo final. Para abordar a cena que estudamos, portanto, não basta ter em vista apenas o objetivo final. Isto fatalmente falsearia a interpretação. Um ator que entrasse em cena querendo "unir‑se a Julieta" simplesmente não saberia o que fazer, e provavelmente deslizaria para um objetivo falso (mostrar‑nos os sentimentos da personagem, por exemplo). Ele pode então escolher o objetivo específico "rever Julieta" (alcançado este, o novo objetivo poderá ser "falar com ela", e assim por diante). Agora, ao entrar em cena, Romeu não sabe onde está sua amada; para revê‑la, é preciso antes localizá‑la. E mais, ele encontra‑se em terreno inimigo. Há um objetivo anterior a encontrar Julieta, que é não ser visto. Romeu não pode fazer nenhum ruído. O ator então entraria em cena tendo em mente o objetivo principal de rever Julieta, deslocando‑se com todo o cuidado a fim de não ser visto (e também porque é noite, e o terreno lhe é desconhecido). Mesmo que o palco esteja vazio, ele precisa saber se o terreno em que pisa é gramado, areia, pedra, etc., pois as sensações que se tem ao pisar esses vários tipos de terreno são diferentes, bem como a maneira com que o corpo desloca‑se aos percorrê‑los. Ele também pode definir o que a personagem ouve ao longo do trajeto (seus próprios passos, um pássaro, vozes no interior do palácio ‑ de quem? ‑, um chafariz), que cheiros percebe... As possibilidades são inumeráveis. Note‑se que todos esses detalhes imaginários servem para a construção da cena; não há nenhuma necessidade de que sejam percebidos e decodificados pelo público. O importante é que o ator esteja envolvido com uma seqüência definida de pequenas ações que o conduzirão até o momento em que verá Julieta sair ao balcão.

2. A seqüência poderá ser abordada de maneira não‑realista; através de metáforas, por exemplo. Romeu está apaixonado; poderíamos dizer que ele "está nas nuvens". O ator poderá entrar imaginando que está andando sobre nuvens, e também aqui suas imagens terão que encarnar‑se, ou seja, os pés têm que "sentir" a consistência e a temperatura da nuvem, a pele sentirá, digamos, o calor da luz do sol, ele ouvirá a certa altura o ruído distante de um trovão, etc.

3. O ator também poderá definir uma seqüência de tensões e micromovimentos musculares, como uma dança que é realizada no interior do corpo, sem deixar que o público perceba o desenho dessa dança.

Em todo caso, o fundamental é que o ator tenha uma seqüência de ações definida (e detalhada) que possa conduzi‑lo; que ele saiba a cada momento o que a personagem quer e o que ela está fazendo para alcançar esse objetivo, de maneira que sua interpretação tenha uma unidade e flua ininterrupta do início ao fim do espetáculo.

Sugiro que estudem a segunda parte de A Criação de um Papel, de Stanislavski, onde o mestre russo estuda uma montagem da peça Otelo. Saliento que essa maneira de abordar a cena pode ser usada em qualquer linguagem, desde o naturalismo mais radical até o distanciamento brechtiano, ou uma cena clownesca (feitas as necessárias adaptações quanto à gramática da cena).

Veja também uma pequena bibliografia básica sobre o trabalho do ator. Em relação à temática da ação que, volto a insistir, é fundamental e arquitetônica para o trabalho do ator, aconselho particularmente a leitura de A Preparação do Ator, A Construção da Personagem e A Criação de um Papel, de C. Stanislavski, A Canoa de Papel, de E. Barba, Método ou loucura, de R. Lewis e Ator e Método, de E. Kusnet.

São Paulo, 22 de julho de 1998.

(1) Aristóteles. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo, Abril Cultural, 1979, p. 246 (1450a, 16).

(2) Citado em Pallottini, Renata. Introdução à Dramaturgia. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1983, p. 16.

(3) Quem quiser aprofundar essa questão, pode começar pelo estudo das obras citadas nas duas notas acima.

(4) Stanislavski, Constantin. A Preparação do Ator. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1982, p. 67‑69.



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Ética
(Constantin Stanislavski) 

Ama a arte em você mesmo
e não você mesmo na arte.


Torzov se dirige a nós: “Imagine que você veio ao teatro para representar um papel
importante. O espetáculo começa daqui a meia hora. Na vida particular você tem muitas
preocupações e aborrecimentos. Em casa aconteceu alguma coisa. Um ladrão acabou de
roubar o teu casaco e o paletó novo. Neste momento você tem mais uma preocupação: assim que entrou no camarim você se deu conta de que tinha deixado em casa a chave da gaveta aonde guarda o dinheiro. Para que ninguém roube! E amanhã vence o aluguel! Você não pode deixar passar a data porque as tuas relações com a proprietária são muito tensas.
E depois, tem ainda uma carta de casa – teu pai está doente. Isto te angustia muito: antes de tudo porque você o ama, e depois, porque viria a faltar a ajuda material, se lhe acontecesse alguma coisa – o teu salário no teatro é baixo.
Mas a coisa mais desagradável são as relações ruins que você tem com teus colegas e com a direção do teatro. Os teus colegas não perdem uma ocasião para debochar de você e se permitem fazer brincadeiras desagradáveis durante o espetáculo: seja omitindo de propósito uma fala, seja mudando inesperadamente as marcações, seja, durante a sessão, sussurrando alguma coisa ofensiva ou indecente. E além do mais você é tímido, e fica inseguro. Mas é exatamente isso que querem os teus colegas, e é este o divertimento deles. Um pouco por tédio, um pouco para se divertir.
Reflita atentamente sobre aquilo que acabei de contar e julgue se é fácil, nesta situação, se concentrar o quanto é necessário para o trabalho criativo em cena.
Estamos todos naturalmente de acordo que é uma tarefa difícil, sobretudo por causa do pouco tempo que sobra antes do espetáculo.
- Se pelo menos estivéssemos prontos a tempo com a maquiagem e o figurino!
- Não se preocupem com isto – nos tranqüiliza Torzov.
Com sua mão de expert o ator arruma na cabeça a peruca e se maquia. Os gestos vão
sozinhos, mecanicamente, e você nem se dá conta de que está pronto.
Você tem apenas o tempo de se precipitar em cena no último segundo. A cortina se levanta e você ainda está sem fôlego. A tua língua diz o texto da primeira cena pela força do hábito, como um papagaio. Depois, recuperado o fôlego, você pode pensar na “sensação de si em cena”.
Você acha que eu estou brincando e sendo irônico? Claro que não. É preciso admitir que na vida teatral nos deparamos freqüentemente com um comportamento assim, anormal, diante dos nossos deveres artísticos. Assim concluiu Arcadj Nicolaevic. Depois de uma breve pausa acrescentou:
- Agora vou apresentar um quadro diferente: ficam as circunstâncias da vida pessoal, isto é, os problemas familiares, a doença do teu pai, e o resto; mas no teatro te espera alguma coisa totalmente diferente: todos os membros da família dos atores acreditam naquilo que se diz no meu livro A minha vida na arte. Lá se diz que nós atores somos pessoas de sorte, porque neste mundo desmedido o destino nos concedeu algumas centenas de metros cúbicos: o nosso teatro, no qual podemos criar a nossa própria vida artística, especial, magnífica que transcorre na sua maior parte em uma atmosfera criativa, nos sonhos e na realização cênica deles, no trabalho artístico coletivo,em comunhão constante com o gênio de Shakespeare, Pushkin, Gogol, Molière e outros.
Não basta isso para fazer um maravilhoso pedaço de mundo? É claro, então, qual destas duas variantes nos agrada... Não estão claros no entanto, os meios para a sua realização.
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1 tradução de Celina Sodré do texto Ética opera non finita do livro
STANISLAVSKIJ: L’ATTORE CREATIVO, editora LA Casa Usher.
São muito simples. Protejam o seu teatro antes de tudo que é negativo, e aparecerão as
condições favoráveis ao trabalho e à sensibilidade cênica de que precisa.
Não se pode entrar no teatro com os sapatos sujos. Tirem fora a poeira e a sujeira antes de entrar. Entretanto deixem fora os sapatos e todas as pequenas preocupações, as brigas, as questões que tornam a tua vida difícil e te distraem da arte.
Limpe a garganta antes de entrar no teatro. Depois que entrou você não pode mais cuspir pelos cantos.
Mas os atores, na maior parte dos casos, transferem de todas as partes para o teatro cada
mesquinharia, implicâncias, intrigas, calúnias, inveja, egoísmo mesquinho. O resultado é, não um templo de arte, mas uma lixeira, uma escarradeira, um chiqueiro.
- Você não acha que tudo isso é humano e inevitável? Sucesso, glória, competição, inveja – intervem Govorkov, em defesa da normalidade dos teatros.
- É preciso arrancar tudo isto da alma, até as raízes – disse Torzov ainda mais energicamente.
- Mas é possível? – replicou de novo Govorkov.
- Bem. Suponhamos que seja impossível se liberar completamente da mesquinhez cotidiana da vida. Mas, seguramente, é possível esquece-la por um certo período de tempo, deixar-se distrair por alguma coisa de interessante. É preciso querer isto, decididamente e conscientemente.
- É cedo para dizer. – duvidou Gorvokov.
- Se até isto é superior às tuas forças, então, por favor, volte a viver entre as discórdias
domésticas, mas sozinho, e sem atrapalhar a alma dos outros!
- Isto é ainda mais difícil. Cada um gostaria de dividir com os outros as suas preocupações, aliviar a alma. Os debatedores não conseguiam chegar a um acordo.
- De uma vez por todas é preciso entender que é falta de educação lavar a roupa suja diante de todos, que desta maneira parece falta de controle, falta de respeito em relação ao próximo, o egoísmo, a indisciplina e os maus hábitos... De uma vez por todas é preciso deixar de lado a auto comiseração e o desprezo por si. Em sociedade é preciso sorrir, como fazem os americanos. A eles não agradam os rostos amargos. Chore e sofra em casa, ou quando estiver sozinho. Com os outros, esteja de bom humor, alegre e simpático. Neste ponto é preciso exercitar o auto-controle.
- Gostaríamos de fazer, mas como? Perguntam os alunos com espanto.
- Pense um pouco mais nos outros e um pouco menos em você mesmo. Cuide da atmosfera comum e do trabalho comum. E, então, você estará bem.
Se cada um dos trezentos colaboradores trouxesse consigo ao teatro a alegria, isto curaria até o pior dos manicômios.
O que é melhor? Consumir a alma, ou então, estudar junto a trezentas pessoas, um modo de manter afastada a auto comiseração e se dedicar totalmente ao trabalho querido? Quem é mais livre? Quem se fecha na sua independência, ou quem, esquece de si, e se preocupa com a liberdade dos outros? Se todos se preocupam com todos, então a humanidade inteira defenderá também a minha liberdade pessoal.
- Como é possível? – Vjunzov não entendia.
- O que tem de incompreensível? – perguntou impressionado Torzov – Se noventa e nove em cada cem pessoas se preocupam com a liberdade comum, e então também com a minha, eu, o centésimo, vou ter muita facilidade. Se ao contrário, todos os noventa e nove pensam só na sua liberdade pessoal e, os outros, incluindo eu mesmo, são oprimidos, então eu, para proteger a minha liberdade devo combater sozinho todos os noventa e nove egoístas. Esses oprimem, mesmo não querendo, a minha liberdade, já que cuidam só da própria liberdade.

A mesma coisa acontece entre nós: não só vocês, mas todos os membros da família do teatro se ocupar para que vocês se sintam bem entre as paredes do teatro. Então se cria uma atmosfera na qual se superam os maus humores e se esquecem as pequenas preocupações da vida cotidiana. Em tais condições o trabalho ficará mais fácil. Esta disponibilidade para o trabalho, esta condição de ânimo elevada, eu chamo isto, com as minhas palavras, de “pré- disposição para o trabalho”. Seria preciso chegar sempre no teatro com este estado de espírito.
Ordem, disciplina, ética, etc., não servem apenas para a causa comum, mas fundamentalmente para os objetivos artísticos da nossa produção.
A primeira condição para obter a “pré-disposição para o trabalho” é a observância da
máxima: “Ame a arte em você e não você na arte”. Preocupe-se então, antes de tudo, que a tua arte esteja bem no teatro.
II
Uma das condições para que se crie uma atmosfera sã no teatro é que haja uma forte
autoridade das pessoas que, por um motivo ou por outro, devem ter a liderança.
Até quando o diretor ainda não tiver sido escolhido ou nomeado, se pode discutir, lutar ou protestar contra este ou aquele candidato à direção. Mas assim que uma determinada pessoa é colocada à frente do teatro ou de um setor, então é preciso sustentar a coisa, enquanto é possível, no interesse próprio e do teatro porque quanto mais ele for fraco, maior é a necessidade do teu suporte. Se o diretor não tem autoridade, se paralisa o centro motor do teatro inteiro. Pense aonde iria parar um trabalho coletivo sem um promotor que faça avançar, que dirija o trabalho comum...
Mas a nós agrada ofender aqueles que nós mesmos exaltamos, desacredita-los e destruí-los.
Se uma pessoa de talento assume uma posição importante ou se eleva além do nível geral por qualquer motivo, nós o acusamos e murmuramos contra ele: “Não tem o direito de se fazer de superior. Não rasteje pelos postos mais altos, você oportunista”. Quantas pessoas dotadas de talento, e que nos eram necessárias, foram perdidas desta maneira. Só poucos tiveram o reconhecimento e a admiração, apesar de tudo. Mas em geral estão bem os oportunistas, que sabem como manter o pulso. Resmungamos entre nós, mas aceitamos; porque não somos unidos. Fica difícil, e temos medo de depor quem nos mantém dependentes. No nosso teatro está na ordem do dia a luta entre atores e diretores em primeiro lugar, a inveja do sucesso dos colegas, a valorização das pessoas pelo dinheiro que tem ou pelo emprego que tem, com poucas exceções e tudo isto danifica muito o teatro. Escondemos sob belas palavras, como “nobre competição”, o egoísmo, a inveja e as intrigas, mas no entanto, nestas frases se infiltram as exalações venenosas do ciúme que se aninha nas coxias e a da intriga, emprestando a atmosfera do teatro.
Por medo da concorrência ou por inveja mesquinha, os atores, acolhem, prontos a desferir um golpe, os recém chegados à nova família teatral. Se os novatos conseguem superar a prova.
  

Sobre o método das ações físicas Jerzy Grotowski





Os atores pensavam poder organizar seu papel através das emoções e Stanislavski por muitos anos de sua vida pensou assim, de maneira emotiva.  O velho Stanislavski descobriu verdades fundamentais e uma delas, essencial para o seu trabalho, é a de que a emoção é independente da vontade.  Podemos tomar muitos exemplos da vida cotidiana.  Não quero estar irritado com determinada situação mas estou.  Quero amar uma pessoa mas não posso amá-la, me apaixono por uma pessoa contra a minha vontade, procuro a alegria e não acho, estou triste, não quero estar triste, mas estou.  O que quer dizer tudo isso?  Que as emoções são independentes da nossa vontade.  Agora, podemos achar toda a força, toda a riqueza de emoções de um momento, também durante um ensaio, mas no dia seguinte isto não se apresenta porque as emoções são independentes da vontade.  Esta é uma coisa realmente fundamental.  Ao contrário, o que é que depende da nossa vontade?  São as pequenas ações, pequenas nos elementos de comportamento, mas realmente as pequenas coisas - eu penso no canto dos olhos, a mão tem um certo ritmo, vejo minha mão com meus olhos, do lado dos meus olhos quando falo minha mão faz um certo ritmo, procuro concentrar-me e não olhar para o grande movimento de leques (referência às pessoas se abanando no auditório) e num certo ponto olho para certos rostos, isto é uma ação.  Quando disse olho, identifico uma pessoa, não para vocês, mas para mim mesmo, porque eu a estou observando e me perguntando onde já a encontrei.  Vejam a posição da cabeça e da mão mudou, porque fazemos sempre uma projeção da imagem no espaço; primeiro esta pessoa aqui, onde a encontrei, em qualquer lugar a encontrei, qualquer parte do espaço e agora capto o olhar de um outro que está interessado e entende que tudo isso são ações, são as pequenas ações que Stanislavski chamou de físicas.  Para evitar a confusão com sentimento, deve ser formulável nas categorias físicas, para ser operativo.  É nesse sentido que Stanislavski falou de ações físicas.  Se pode dizer física justamente por indicar objetividade, quer dizer, que não é sugestivo, mas que se pode captar do exterior.
O que é preciso compreender logo, é o que não são ações físicas.  As atividades não são ações físicas.  As atividades no sentido de limpar o chão, lavar os pratos, fumar cachimbo, não são ações físicas, são atividades.  Pessoas que pensam trabalhar sobre o método das ações físicas fazem sempre esta confusão.  Muito freqüentemente o diretor que diz trabalhar segundo as ações físicas manda lavar pratos e o chão.  Mas a atividade pode se transformar em ação física.  Por exemplo, se vocês me colocarem uma pergunta muito embaraçosa, que é quase sempre a regra, eu tenho que ganhar tempo.  Começo então a preparar meu cachimbo de maneira muito "sólida".  Neste momento vira ação física, porque isto me serve neste momento.  Estou realmente muito ocupado em preparar o cachimbo, acender o fogo, assim DEPOIS posso responder à pergunta.
Outra confusão relativa às ações físicas, a de que as ações físicas são gestos.  Os atores normalmente fazem muitos gestos pensando que este é o mistério.  Existem gestos profissionais - como os do padre.  Sempre assim, muito sacramentais.  Isto são gestos, não ações.  São pessoas nas situações de vida.  Pois sobretudo nas situações de tensão, que exigem resposta imediata, ou ao contrário em situações positivas, de amor, por exemplo, também aqui se exige uma resposta imediata, não se fazem gestos nessas situações, mesmo que pareçam ser gestos.  O ator que representa Romeu de maneira banal fará um gesto amoroso, mas o verdadeiro Romeu vai procurar outra coisa; de fora pode dar a impressão de ser a mesma coisa, mas é completamente diferente.  Através da pesquisa dessa coisa quente, existe como que uma ponte, um canal entre dois seres, que não é mais físico.  Neste momento Julieta é amante ou talvez uma mãe.  Também isto, de fora, dá a impressão de ser qualquer coisa de igual, parecida, mas a verdadeira reação é ação.  O gesto do ator Romeu é artificial, é uma banalidade, um clichê ou simplesmente uma convenção, se representa a cara de amor assim.  Vejam a mesma coisa com o cachimbo, que por si só é banal, transformando-a a partir do interior, através da intenção - nesta ponte viva, e a ação física não é mais um gesto.
O que é gesto se olharmos do exterior?  Como reconhecer facilmente o gesto?  O gesto é uma ação periférica do corpo, não nasce no interior do corpo, mas na periferia.  Por exemplo, quando os camponeses cumprimentam as visitas, se são ainda ligados à vida tradicional, o movimento da mão começa dentro do corpo (Grotowski mostra), e os da cidade assim (mostra).  Este é o gesto.  Ação é alguma coisa mais, porque nasce no interior do corpo.  Quase sempre o gesto encontra-se na periferia, nas "caras", nesta parte das mãos, nos pés, pois os gestos muito freqüentemente não se originam na coluna vertebral.  As ações, ao contrário, estão radicadas na coluna vertebral e habitam o corpo.  O gesto de amor do ator sairá daqui, mas a ação, mesmo se exteriormente parecer igual será diversa, começa ou de qualquer parte do corpo onde existe um plexo ou da coluna vertebral, aqui estará na periferia só o final da ação.  É preciso compreender que há uma grande diferença entre Sintomas e Signos/Símbolos.  Existem pequenos impulsos do corpo que são Sintomas.  Não são realmente dependentes da vontade, pelo menos não são conscientes - por exemplo, quando alguém enrubesce, é um Sintoma, mas quando faz um Símbolo de estar nervoso, este é um Símbolo (bate com o cachimbo na mesa).  Todo o Teatro Oriental é baseado sobre os Símbolos trabalhados.  Muito freqüentemente na interpretação do ator estamos entre duas margens.  Por exemplo, as pernas se movem quando estamos impacientes.  Tudo isso está entre os Sintomas e Símbolos.  Se isto é derivado e utilizado para um certo fim se transforma em uma ação.
Outra coisa é fazer a relação entre movimento e ação.  O movimento, como na coreografia, não é ação física, mas cada ação física pode ser colocada em uma forma, em um ritmo, seria dizer que cada ação física, mesmo a mais simples, pode vir a ser uma estrutura, uma partícula de interpretação perfeitamente estruturada, organizada, ritmada.  Do exterior, nos dois casos, estamos diante de uma coreografia.  Mas no primeiro caso coreografia é somente movimento, e no segundo é o exterior de um ciclo de ações intencionais.  Quer dizer que no segundo caso a coreografia é parida no fim, como a estruturação de reações na vida.

De uma palestra proferida por Grotowski no Festival de Teatro de Santo Arcangelo (Itália), em junho de 1988.