quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Uma faísca

(Maria Rita Sodré - postado em 17 de maio de 2010)

Pensando nas nossas conversas sobre o trabalho do ator e na leitura de “O poder do mito”, de Joseph Campbel...
É delicado pensar e entender como a busca e pesquisa dentro do trabalho do ator são intimamente ligadas – e não poderiam nunca deixar de ser- à busca e compreensão da imensidão que permeia a nossa espécie.
A discussão do “ser” em cena e não do “representar” em cena, o “estar presente”, estar em relação com o que é palpável e real, com o que se respira e se emana desse recorte de vida - sobre viver no espaço cênico a verdade mais próxima da verdade humana, é um desses instantes em que essas duas filosofias se fundem.
Joseph Campbell, em “O Poder do Mito” diz que nosso pensamento é unicamente guiado e concebido por “pares de opostos” – da oposição se constrói a concepção de todo e qualquer movimento humano.
“O mistério da vida está além de toda concepção humana. Tudo o que conhecemos é limitado pela terminologia dos conceitos de ser e não – ser, plural e singular, verdadeiro e falso. Sempre pensamos em termos de opostos.” (...) Porque não podemos pensar de outro modo. (...) É a natureza da nossa realidade” (...) eu e você, isto e aquilo, verdadeiro e falso – tudo tem seu oposto”. (pg.51)   
Uma das questões levantadas no último encontro foi justamente a dualidade fundamental da existência – e assim do ator enquanto "personagem" - situação, enquanto o ser em cena. A alegria por trás da tristeza, a tristeza por trás da alegria, a dor e o prazer, a ida e a vinda.
Pensar na situação, no estado de ser com a tamanha complexidade que lhe cabe como o símbolo da fração de vida que representa naquele momento – com o conjunto de opostos que lhe serve. Quais são esses opostos? De que opostos somos feitos? Quais opostos pulsam naquele instante? Qual a sombra por trás daquela luz?
Ao lado dos opostos básicos que dividimos com todo o universo – e que montam o inconsciente coletivo – a vida e a morte, a sombra e a luz, o terreno e o divino; existe a oposição crucial entre o nosso mundo interno e externo, mundos nos quais também se deve mergulhar na trajetória da pesquisa de ator.

“O mundo interior é o mundo das suas exigências, das suas energias, da sua estrutura, das possibilidades, que vão ao encontro do mundo exterior.E o mundo exterior é o mundo da sua encarnação.É aí que você está.Como disse Novalis, “o pouso da alma é aquele lugar onde o mundo interior e o exterior se encontram” (pg.60)

A incongruência entre ambos os mundos pode tornar rica a experiência como pesquisadores da vivência humana. A intensificação dos opostos, a maneira como as contradições podem ser latentes em cena, a disponibilidade dos sentidos a favor desse atrito do interno com o externo.
Talvez seja exatamente aí, nessa aspereza, nessa faísca que saí, que esteja um dos caminhos a ser desbravados na nossa busca como atores. 

Maria Rita Sodré   
(atriz do Grupo de Estudos Permanente do Teatro dAdversydade)

Um comentário:

  1. muito rico pensar em oposição na construção/elaboração de um personagem ou estado.
    nunca, ninguém, é só e unicamente. somos vários, sempre.
    e trabalhar opostos, torna-nos mais humanos em cena.

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